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Ruth Wilson Gilmore e a construção de um mundo sem prisões

Em 'Geografia da abolição: ensaios rumo à libertação', publicado no Brasil, a autora articula pensamentos sobre território, liberdade e justiça racial

Por Humberto Maruchel
29 jul 2025, 09h00
ruth-wilson-gilmore-geografia-abolicao-ensaios-rumo-libertacao-livro
 (Mateus Rodrigues / Editora Boitempo/divulgação)
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Ruth Wilson Gilmore tem o hábito de sonhar grande, de semear utopias mesmo quando o mundo parece ter perdido a capacidade de acreditar nelas. Diante do acúmulo das crises globais e da tentação constante de alienação como forma de sobrevivência, ela permanece firme em seus ideais: é preciso que os movimentos se organizem, e é fundamental que a liberdade seja tanto o caminho quanto o destino.

Sua trajetória acadêmica e política é marcada por rupturas e reinvenções. Iniciou seus estudos na prestigiosa Universidade Yale, no departamento de Artes Cênicas — a mesma instituição onde seu avô paterno trabalhou como zelador e ajudou a fundar o primeiro sindicato de operários da universidade. A luta por justiça social, portanto, faz parte de sua história familiar e pessoal.

Desde jovem, enfrentou o desafio de ser uma das únicas estudantes negras em escolas privadas. O engajamento com movimentos sociais e a militância antirracista a acompanharam durante sua formação. Décadas depois, retomou o percurso acadêmico ao ingressar no doutorado em geografia na Rutgers University. Foi ali que desenvolveu a base teórica de uma de suas principais contribuições: o campo da geografia carcerária.

A partir de uma análise interdisciplinar, Gilmore passou a investigar como o encarceramento em massa nos Estados Unidos está profundamente enraizado nas lógicas do capitalismo racial. Para ela, as prisões não são apenas respostas a crimes, mas mecanismos que operam em articulação com o território, o mercado de trabalho, a especulação imobiliária, a crise agrícola e o desmonte das políticas públicas. Ou seja, o cárcere cumpre um papel estratégico na administração das desigualdades sociais, econômicas e raciais.

Como professora, pesquisadora e militante, Gilmore é uma das fundadoras do campo da geografia da abolição, uma abordagem que defende a construção de um mundo sem prisões, a partir de práticas coletivas de cuidado, justiça e reestruturação social. Sua obra mais conhecida, Golden Gulag, tornou-se referência internacional nos debates sobre encarceramento e racismo estrutural.

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(Boitempo/divulgação)

Em sua mais recente publicação em português, Geografia da Abolição: ensaios rumo à libertação (Boitempo, 2025), a autora reúne textos produzidos ao longo de três décadas. São reflexões que entrelaçam teoria e prática, ajudando a pensar de maneira sistêmica questões como democracia, luta social, racismo, violência estatal e direitos humanos.

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Em vez de tratar a liberdade como uma ideia abstrata, um direito individual ou um valor distante, ela a entende como algo material, construído coletivamente, situado no espaço; um resultado de práticas sociais, políticas, econômicas e culturais que moldam o território e as relações humanas. Algo que se constrói ativamente, em interação com o mundo ao nosso redor.

Em entrevista à Bravo!, Gilmore compartilhou suas ideias com a serenidade de quem encara temas urgentes e, muitas vezes, devastadores, sem ceder ao desespero. Com olhar calmo e sorriso constante, parece carregar consigo uma sabedoria que boa parte do mundo ainda não foi capaz de alcançar.

Bravo: Bom, para começar, o que a levou a investigar a relação entre espaço, encarceramento e capitalismo racial?

Ruth Gilmore: Bem, por muitos anos eu estive envolvida em diferentes lutas políticas — na defesa do acesso à educação, em movimentos trabalhistas, e também participei de um pequeno partido comunista, do qual me desvinculei há bastante tempo. Deixei o partido, mas não os ideais. Fui criada dentro do Movimento de Libertação Negra nos Estados Unidos, então minha vida inteira esteve ligada à política.

E, independentemente do que estivéssemos fazendo — fosse moradia, serviços sociais — a questão do encarceramento e da criminalização sempre surgia. E então, nos anos 1990, houve um caso emblemático: os policiais de Los Angeles espancaram Rodney King. Eles não o mataram naquele momento, mas ele sofreu ferimentos tão graves que acabou morrendo depois.

Na sequência disso, houve muitas mobilizações. O levante de Los Angeles aconteceu, e nosso grande amigo, o falecido Mike Davis, disse: “Há um grupo de mulheres — em sua maioria mães de filhos adultos e crianças que foram presos — que precisam de ajuda. Por que vocês não vão a uma reunião delas?”

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Então fui. E o Craig também foi. Começamos a trabalhar com essa organização chamada Mothers Reclaiming Our Children (Mães Recuperando Nossos Filhos).

Isso nos levou a mais ações de organização política e, enquanto tudo isso acontecia, decidi — já com mais de 40 anos, sem aposentadoria ou perspectivas financeiras seguras — que precisava de um emprego formal. Então voltei à escola para fazer um doutorado, com a esperança de conseguir um bom trabalho.

E, no doutorado, estudei geografia. Nunca foi minha intenção escrever sobre prisões. Meu plano era escrever sobre universidades urbanas, uso do solo, saúde pública, e a destruição das comunidades da classe trabalhadora — como os recursos estavam sendo drenados desses territórios. Mas meu orientador disse que não tinha interesse nesse tema. E eu pensei: “Putz, e agora? O que vou fazer?”

Você estava tentando evitar o tema das prisões?

Não, de forma alguma. Eu realmente queria falar sobre urbanismo, instituições urbanas, a relação entre o urbano e o rural. Esses sempre foram meus interesses, e foi por isso que escolhi a geografia.

Então pensei: ou arrumo outro orientador ou mudo de tema. Passei um ano escrevendo artigos diferentes para cada disciplina, tentando ver o que fazia sentido para mim. Em um curso de planejamento urbano, escrevi um artigo sobre prisões — e foi emocionante. E foi assim que acabei pesquisando a relação entre raça, espaço e prisões.

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Então talvez minha primeira pergunta devesse ter sido: o que a levou à geografia?

(risos) Por acaso. Foi mesmo por acaso. Achei que faria um curso em planejamento urbano e regional. Mas eu e Craig fomos a uma conferência chamada Rethinking Marxism, que acontece de tempos em tempos em Massachusetts. Lá, ele assistiu a uma palestra e eu a outra. Depois, quando nos reencontramos, ele me disse: “Encontrei a sua disciplina. É a geografia.”

Ele tinha assistido à palestra do Neil Smith, que acabou se tornando meu orientador. O Craig ficou tão impressionado com o que o Neil disse que teve certeza de que eu me empolgaria em estudar com ele. E foi o que aconteceu.

E depois que você escolheu esse tema dentro da geografia, enfrentou algum tipo de resistência no campo?

Boa pergunta. Sim e não. Geografia não é uma disciplina muito grande nos EUA. A maioria dos departamentos de geografia foi fechada entre os anos 1940 e 1950. Então, é um campo meio marginal. Nenhuma universidade de elite, salvo talvez Berkeley, tem um departamento de geografia. Isso oferece uma certa flexibilidade, já que o campo não está tão preso à hierarquia acadêmica tradicional.

Dito isso, havia alguns geógrafos que acreditavam que podiam “defender” a disciplina, impedindo pessoas como eu de desenvolver projetos como o que propus. Mas eu simplesmente os ignorei. E acreditei — corretamente — que, se eu fizesse meu trabalho com qualidade, com apoio e incentivo de pessoas como o Neil, poderíamos transformar a geografia. E conseguimos.

E como foi sua vida depois que concluiu o doutorado? Você mencionou que buscava mais estabilidade.

Ah, sim. Consegui um bom emprego. Depois percebi que não gostava dele, então consegui outro bom emprego. E depois mais um. Até chegar ao que tenho agora, no qual estou há bastante tempo.

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Você afirma que a liberdade é um lugar, não apenas um princípio. Como essa ideia pode transformar como pensamos as lutas sociais e políticas contemporâneas?

A ideia de que “a liberdade é um lugar” significa que criamos lugares a partir de como combinamos nossas energias — uns com os outros, com o ambiente natural, construído, industrial e cultural — ao transformá-los, entende?

Então, se olharmos ao redor do Brasil, encontramos vários lugares de liberdade que as pessoas construíram. O MST faz isso o tempo todo. Quilombos fizeram isso várias vezes. Algumas partes de algumas favelas são lugares de liberdade. Mas é difícil. Muito difícil — e é algo permanente. Digo, não sou trotskista, mas a revolução nunca termina. Ela apenas recomeça na manhã seguinte.

E uma das razões pelas quais formulei meu pensamento dessa forma — “liberdade é um lugar” — foi para tirar as pessoas da ideia de que liberdade é uma capacidade abstrata, algo que paira no ar, e que alguns de nós simplesmente conseguimos inspirar, por acaso.

Não. Liberdade é social. Nós a construímos. De forma muito deliberada — e continuamente. Parte disso é cultural, parte é econômica, parte é política. E, como disse, também diz respeito ao espaço físico: como produzimos, o que produzimos, como usamos o solo, como compartilhamos a água, e assim por diante.

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(Mateus Rodrigues / Editora Boitempo/divulgação)
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Você tem algum exemplo, nos EUA, de lugares de liberdade?

Sim. Há pessoas tentando fazer esse tipo de trabalho de várias formas diferentes. Por exemplo, há um movimento, parte do movimento negro pela liberdade, chamado Jackson Rising.

Jackson é uma cidade no Mississippi — o coração do apartheid americano. Um lugar central em relação aos aspectos mais cruéis da escravidão nos EUA, entre outras coisas. Mas, nos últimos 20 anos, pessoas com uma longa experiência — passada por várias gerações — de construção da liberdade por meio da criação de espaços têm construído cooperativas em Jackson. De tempos em tempos, essas pessoas também ocupam cargos públicos na cidade para ampliar a capacidade popular de criar instituições e organizações voltadas para a vida — e não para a sua destruição.

Esse é um exemplo. Mas há muitos outros. Existem organizações que lutam contra a violência contra as mulheres, mas que não veem a criminalização, a polícia ou o encarceramento como soluções — porque essas respostas continuam pressupondo que a violência vai acontecer. Essas organizações estão encontrando formas de promover segurança e bem-estar dentro dos coletivos, nos lares, nas comunidades, em diferentes contextos e locais. Eu poderia seguir dando exemplos — existem muitos.

Eu estava justamente pensando nisso… Quando falamos em abolicionismo, uma das maiores resistências é justamente em relação à violência contra a mulher. Como essa ideia poderia funcionar diante dos níveis tão altos dessa violência? O que você pensa sobre isso?

Primeiro: o abolicionismo exige que mudemos uma coisa — que é tudo. Ou seja, agimos com o que temos hoje, ao mesmo tempo, em que construímos o que queremos ter. O problema — e a persistência — da violência contra a mulher nos ensina, repetidamente, que ela não é resolvida com mais violência, certo?

Isso é um ponto importante. Outro: os abolicionistas que lutam contra a violência direcionada às mulheres — ou contra a violência em geral — não se satisfazem com a ideia de que punir o agressor seja suficiente. Isso é punição — mas não é eliminar a violência contra as mulheres.

Então o que essas pessoas fazem é se perguntar: o que torna as mulheres vulneráveis a esse tipo de violência? Quais relações de dependência permitem que os agressores não apenas machuquem, mas façam com que essas mulheres sintam que devem suportar isso? Que eles têm o direito de mandar nelas?

Na verdade, se pensarmos bem, estupro, linchamento e genocídio têm algo em comum: todos são expressões violentas dessa ideia de “direito de governar o outro”.

Por mais abstrato que isso possa parecer, o fato é que, no cotidiano, as pessoas encontram formas de sair dessa hierarquia, dessa estrutura que sustenta esse suposto “direito” de dominar alguém.

Trata-se de uma mudança social muito ambiciosa — mas é uma mudança que, na prática, já acontece todos os dias. Eu poderia mostrar sites com exemplos disso em várias partes do mundo — inclusive nos Estados Unidos.

No seu livro, você discute o conceito de “Estado anti-Estado”. Como isso tem moldado políticas públicas nos Estados Unidos e em outros países, especialmente no Sul Global?

Essa é uma ótima pergunta. Fico feliz que tenha perguntado. Primeiramente, o “Estado anti-Estado” é um conjunto específico de relações — não se trata das instituições estatais de maneira abstrata, mas dessas relações particulares.

Como explico algumas vezes no livro, esse tipo de Estado se tornou cada vez mais poderoso quando as capacidades do Estado — sua habilidade de agir — foram capturadas por figuras como Donald J. Trump (olha, até falei o nome dele, coisa que geralmente evito!), ou como o Bolsonaro aqui no Brasil, entre outros.

Essas figuras dizem: “Vou acabar com essa coisa chamada Estado.” Mas quando assumem o poder, usam essas capacidades estatais para fazer outra coisa. Ou seja, eles não acabam com o Estado — eles apenas o redirecionam.

E ainda assim, tudo o que fazem — quer dizer, exagero — muito do que fazem é caracterizado por esse discurso de que agem em nome do povo que os elegeu, justamente porque estão “contra o Estado”. É aí que entra o conceito de Estado anti-Estado. Mas, ao mesmo tempo, eles continuam usando todos os instrumentos do Estado o tempo inteiro: militares, polícia, leis, decretos executivos…

Pensando nesse mundo — ou no Sul Global — quando uso o termo “Terceiro Mundo”, quero dizer isso como algo bom, não como algo negativo. Existem tantas configurações diferentes em lugares que têm lutado intensamente para conquistar uma forma significativa de autodeterminação. E há lutas sobre como isso pode se desenvolver, especialmente diante das forças do capitalismo global — que atuam como sabemos — e da presença ou ausência de corrupção.

E não pense, nem por um segundo, que corrupção é um problema exclusivo do Sul. O Reino Unido e os Estados Unidos são dois dos lugares mais corruptos do mundo. Sério.

Vejo pessoas em muitos lugares tentando encontrar formas de garantir as necessidades e os desejos da população — seja por meio do controle de recursos, de novas formas de negociação com atores internacionais (financeiros ou outros), seja através da retomada de terras agrícolas para garantir que elas sejam usadas, pelo menos em sua maior parte, para produção de alimentos e satisfação de necessidades básicas. Todos esses processos estão em curso, e os diversos instrumentos do Estado estão envolvidos neles.

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(Mateus Rodrigues / Editora Boitempo/divulgação)

Faz parte do cotidiano do Brasil e EUA pensar e falar sobre os riscos à democracia.

Sim. E não só sobre a ameaça de tomada do poder por fascistas, mas também de pessoas que não simpatizam com o fascismo e, ainda assim, se perguntam se essa coisa chamada democracia — e aqui eu coloco entre aspas — não está atrapalhando a capacidade das pessoas de determinarem seu próprio futuro, em vez de facilitá-la.

Esses são debates reais. Não tenho uma posição fechada sobre isso, mas reconheço a seriedade dessas discussões.

Por muito tempo ouvimos que os EUA eram uma espécie de modelo, uma democracia plena. O que você pensa sobre isso?

Bom… só desde 1964 é que ninguém nos Estados Unidos pode ser impedido de votar com base na raça ou etnia — desde que atenda aos outros critérios de elegibilidade. Mas o fato é que, primeiro: eleições não são sinônimo de democracia — são apenas um aspecto dela. Segundo: há muitas formas pelas quais as pessoas são excluídas até mesmo dessa participação mínima. Por exemplo, pessoas criminalizadas podem ser impedidas de votar. E isso não é uniforme: varia de estado para estado, não há uma lei federal única.

Famosamente, no ano 2000, durante a eleição presidencial entre George W. Bush e Al Gore, houve uma disputa sobre quem havia vencido. Tudo se resumiu à recontagem de votos na Flórida. Começaram a recontar os votos, e então a Suprema Corte dos EUA decidiu que aquela recontagem não precisava acontecer porque, segundo ela, seria “melhor para o país” — coloco entre aspas — simplesmente declarar Bush vencedor. Mas, por pior que isso tenha sido, não é o quadro completo.

Também é verdade que, na Flórida — e em muitos outros lugares — pessoas com condenações anteriores foram proibidas de votar. E, além disso, pessoas que nunca foram criminalizadas chegaram para votar e foram informadas: “Você não pode votar, seu nome está numa lista. Acreditamos que você foi criminalizado.” E aí, como provar o contrário no único dia em que ocorre a eleição?

Ou seja, o problema maior — e que a Suprema Corte ignorou deliberadamente — é que, na Flórida e em outros lugares, pessoas que deveriam poder votar foram impedidas desde o início. E se essas pessoas tivessem votado, o outro candidato teria vencido. Ele não era meu candidato, mas também não era o George W. Bush. 

E agora, depois do Trump, os riscos não são ainda maiores?

Na verdade… é pior que isso. Para ser honesta, o Trump é o resultado do trabalho de pessoas que, há anos, atuam nos níveis mais baixos dos Estados — nos 3.100 condados que compõem os 50 estados norte-americanos — tentando descobrir como excluir pessoas da participação política.

O Trump é só o produto disso tudo. Sim, ele aprofunda o problema, mas não é ele quem inicia esse movimento. Ele foi eleito porque essas pessoas já estavam dizendo: “Vamos fazer isso.” Ele é consequência, não causa.

Acho que já falamos um pouco sobre isso, mas na sua abordagem o abolicionismo vai muito além do fim das prisões, certo? Que práticas e imaginários coletivos são necessários para construir essa geografia da abolição?

Usei o MST como exemplo, porque estamos aqui no Brasil — e é um ótimo exemplo. Outro é o movimento Abahlali baseMjondolo, na África do Sul. Algumas dessas experiências estão relacionadas ao aspecto eleitoral da democracia. Outras, não diretamente — embora esse aspecto também apareça.

Quer dizer, como você sabe, o MST não é um partido político. Abahlali também não é. Jackson Rising tampouco, embora, em certos momentos, eles tenham candidatos. Então, há várias combinações diferentes de engenhosidade, energia e luta, para tornar possível que as pessoas tenham vidas, tenham uma noção de futuro, possam se reinventar a partir da reinterpretação do mundo.

Você sabe? A gente passa a ter um entendimento diferente de si mesmo quando passa a entender o mundo de outro modo, certo? E isso não é só porque aprendeu algo novo — é porque passou a ter uma nova interpretação do mundo.

Agora, eu vou me arriscar um pouco aqui, mas acho que um dos motivos pelos quais o evangelismo é tão expansivo e bem-sucedido, especialmente nessa grande faixa do planeta que cruza o equador — não só aqui no Brasil, mas dos dois lados do equador, em todo o mundo —, é que os evangélicos (embora existam evangélicos de esquerda, é verdade) estão por aí “colhendo almas”.

E fazem isso persuadindo as pessoas a pensarem diferente sobre si mesmas — e, assim, desenvolvendo uma interpretação do mundo e do futuro que se torna irresistível. E, para mim, é exatamente isso que deveríamos estar fazendo.

Não quero dizer que devamos copiar o evangelismo, mas precisamos levar a sério o motivo pelo qual esses momentos de inspiração capturam tanto a imaginação das pessoas — e, mais importante, sua energia.

E isso tem a ver com o fato de não ser algo abstrato. Ninguém chega dizendo apenas: “Jesus vai te salvar.” Eles dizem: “Estamos aqui para te ajudar com suas necessidades básicas. Vamos te ajudar a resolver problemas práticos. Estamos aqui por você.” É isso que o Partido Comunista deveria estar sempre fazendo: “Somos do Partido Comunista, estamos aqui para te ajudar a resolver seus problemas.” 

É isso que o Abahlali faz, o MST faz, o que abolicionistas estão fazendo em todos os lugares: nas periferias de Paris, em Berlim, Hamburgo, Portugal; em solidariedade com o povo do Sudão, que luta contra a contra-revolução; na África do Sul, aqui no Brasil…

E uma coisa importante que eu gostaria de dizer — porque talvez já estejamos chegando ao fim — é que muitas das ações que reconhecemos como parte da luta abolicionista no mundo não precisam, necessariamente, ser chamadas de abolição por quem as realiza. Ninguém no MST precisa dizer: “Sou abolicionista” para que possamos olhar e reconhecer: “Aqui está a liberdade como lugar.”; “Aqui está a abolição, a emancipação e o ensaio da emancipação.”

Isso é o que importa. Mais do que alguém simplesmente dizer “sou abolicionista”. Porque, também, há muita gente por aí dizendo “sou abolicionista”… ok…

 

Anter de encerrarmos, eu queria falar um pouco sobre a Palestina — e como seus pensamentos sobre a geografia da abolição podem ser aplicados ao que está acontecendo por lá.

Ótima pergunta. Mas, pra mim, a questão não é como aplicar a abolição, entende? A pergunta é: podemos perceber, nas lutas em curso, ações que as pessoas fazem, ou podem fazer, ou talvez venham a fazer? No meio de tanta destruição e genocídio — especialmente em Gaza, mas também na Cisjordânia — é difícil enxergar.

Mas, embora eu não vá à Palestina há 35 anos, meus camaradas me dizem — e não tenho por que duvidar deles — que mesmo nos lugares mais profundos do Estado ocupacional colonial, como as prisões onde estão os palestinos, ou em partes da Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e, quem sabe, até mesmo entre os escombros de Gaza, há pessoas construindo liberdade — dentro do possível — com base em uma longa tradição de resistência à ocupação.

Mas também com base em uma tradição que não busca, como posso dizer…Não busca simplesmente voltar ao que era antes de 1948, mas sim compreender como a longa luta contra o colonialismo de ocupação se conecta a outras lutas, como, por exemplo, contra o controle hierárquico da terra, que já existia no final do Império Otomano. Ou seja, são muitas lutas que estão sendo travadas simultaneamente.

Quando estive na Palestina, em 1990, foi durante a Primeira Intifada. E, camarada… foi impressionante ver o que as pessoas estavam fazendo com recursos extremamente modestos.

Elas estavam se reorganizando — nas relações entre si, nos objetivos práticos que buscavam alcançar. E a abolição sempre é prática — se não for prática, não existe.

Essas pessoas estavam montando clínicas de saúde, fabricando produtos, criando cooperativas agrícolas, escolas… Tudo isso estava acontecendo em toda a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza — que foram os lugares que visitei.

E aquilo não era apenas uma preparação para a libertação. Era o ensaio da emancipação — algo contínuo. Não sei como dizer isso de forma melhor.

O que estavam fazendo não era só para “o dia seguinte”. Era tornar o hoje melhor, como parte do preparo para o amanhã.

Bravo: Que bonito isso. Muito obrigado pela conversa.

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